Resumo: Na seção “Desarranjos florais”, de Distraídos venceremos (1987), Paulo Leminski versou: “lua à vista / brilhavas assim / sobre auschwitz?”. Pretendo analisar este haicai levando em conta [a] a célebre afirmação de Adorno – “Escrever um poema após Auschwitz é um ato de barbárie, e isso corrói até mesmo o conhecimento de por que hoje se tornou impossível escrever poemas” (1949), os estudos [b] “Após Auschwitz” (2003), de Jeanne Marie Gagnebin, e [c] “Literatura, testemunho e tragédia” (2005), de Márcio Seligmann-Silva. Em paralelo a essas referências teóricas, busco pensar, a partir do poema, a “lua” como metáfora de um lugar da poesia: discurso que rumina (sobre) a história.
Leminski, um dia, disse: “lua à vista / brilhavas assim / sobre auschwitz?”[1]. Com sete palavras e uma interrogação, num esquema rítmico semelhante a um haicai, o poeta relembra, via verso, a assombrosa catástrofe que foi a segunda guerra mundial, sobretudo, mas não só, quanto ao genocídio dos judeus promovido por Hitler e sua comparsaria na década de 40 do século XX.
Além da beleza triste do poema em si, com sutil e sedutora sonoridade, por que há de nos interessar, hoje, a lembrança do Holocausto? Exatamente para não esquecer sua existência e, assim, esforçar-se para que a hecatombe não se repita? Que implicações – éticas e estéticas – impregnam esse recordar? O quanto há, aí, no poema e em qualquer entorno discursivo, de inócuo, retórico, demagógico? Em que um poema sobre a dor pode ajudar a entender e alterar o mundo dos homens, esse “tempo de homens partidos”? O poema, ele mesmo, não ganha seu efeito precisamente às custas do grau de espetáculo que a dor, ainda mais se coletiva, queira ou não, tem para o público? Qual o propósito de, décadas depois, um poeta brasileiro, ao qual se junta agora um crítico literário, remexerem nisso? Por um desejo de solidariedade, por ingênua utopia no papel transformador da arte, por mero narcisismo beletrista? Distantes no tempo e no espaço do horror dos campos de concentração, por que, enfim, o soturno prazer de representar em verso e em ensaio aquilo que, outrora, foi – concreta, real, sem maquiagem – a morte de milhões de pessoas?
É claro que as perguntas feitas, à maneira da pergunta do poema, trazem elas mesmas algumas chaves. Sem pieguice, que não calha a uma investigação teórica, mas também sem a frieza com que a razão costuma se armar, inventemos algumas portas para essas chaves.
Em “Literatura, testemunho e tragédia”[2], Márcio Seligmann-Silva estabelece pontos que distinguem os termos Zeugnis e testimonio, elencando suas peculiaridades nos contextos europeu, em especial germânico, e latino-americano; a seguir, pensa a pertinência do conceito de “testemunho” diante de outros, como tragédia, trágico e sublime. Tendo em mente o poema de Leminski, passemos em revista alguns desses pontos abordados por Seligmann.
A perspectiva do texto com teor testemunhal é, por excelência, a da vítima – aquele que sofreu diretamente a ação nefasta de alguma ordem. Já de saída percebemos o estranhamento que nos provoca o haicai: o sujeito que o assina não esteve em Auschwitz, esse símbolo-mor da selvageria sublunar. Isso – não ser uma testemunha original, mas um terceiro – tiraria sua legitimidade ética? (A legitimidade poética, evidentemente, está resguardada, posto que esta se alimenta da imaginação coerentemente construída em suporte verbal, não da experiência que se intenta mimetizar.) Não teríamos, com o poema de Leminski, um curioso caso de “trauma secundário”, ou seja, a incorporação afetiva de um sentimento produzido a partir da traumática história de terceiros, com os quais, de algum modo, se identifica? Também para os que viemos depois da guerra, a sensação de sobreviventes se estende, como se pertencêssemos a uma comunidade real de sobreviventes do morticínio. Talvez a relação que o poeta queira travar com o trauma seja no sentido de enfraquecê-lo, diluí-lo aos poucos, fazendo da existência concreta do tal trauma o mote para a construção de instituições, comportamentos, forças que prezem pela justiça. Arte, literatura, poema são formas de demonstrar essa afirmativa e vital vontade de justiça.
Percebe-se já que trato a pequena pílula de Leminski como uma espécie sui generis de literatura de testemunho (ou, como prefere Seligmann, literatura com teor testemunhal, o que é uma maneira de flexibilizar o conceito): basta para tanto a imagem central e contundente do poema, que – ao perguntar à Lua se seu brilho é o mesmo sempre, independentemente das situações e dos valores que, de longe, ilumina – abala qualquer pretensa neutralidade do artefato poético. A universalidade do horror parece impregnar a aparentemente leve estrutura do poema de apenas onze sílabas e sem título. Mesmo décadas depois, tendo nascido apenas um ano antes do término da guerra, em 1944; mesmo num país, distante da Alemanha e da Europa, encravado noutro continente e com agruras próprias; mesmo sem nunca ter colocado os pés na Polônia, região onde se encontra Auschwitz e de onde, com orgulho, gostava de dizer, provinham suas origens[3], o poeta dispõe o que tem para perquirir a história: palavras arranjadas. Por elas, se desrecalca um passado violento e bárbaro, que não se quer nunca mais. Mas passado que jamais se foi – e não ter ido embora faz desse fantasma pretérito um espanto constante e um perigo visível no nosso cotidiano: se Auschwitz virou um museu de lições, espaço agora aberto à visitação turística, as guerras e os genocídios se perpetuam, não só de forma assaz visível (Iraque, Kosovo, África, Líbano, Palestina, Rio de Janeiro) , mas também de forma “menos ofensiva” à sociedade (mendicância, fome, tráfico, corrupção, miséria), embora tão cruel quanto sua face exposta.
Ao poeta que pretende dar à palavra uma tonalidade efetivamente político-ideológica resta uma saída: questionar o seu próprio fazer, sua “profissão de febre”[4], questionar a eficácia das metáforas, colocar o dedo na ferida, no verbo: “en la lucha de clases / todas las armas son buenas / piedras / noches / poemas”[5]. Poema-arma que Leminski fez ao invocar – na contramão de romantismos e torres de marfim – um dos símbolos mais belos e universais da literatura em todos os tempos, a Lua, e levá-la ao choque com o símbolo da barbárie, Auschwitz. (Afaste-se, entre parênteses, qualquer sentido panfletário que o poema, ou este ensaio, possa insinuar. Pensamos que o engajamento da arte deve partir daquilo que a constitui – cor, volume, som, letra, imagem, movimento, massa – e daí chegar à história. Retrógrados, quiçá, ainda estamos com o bordão maiakovskiano: sem forma revolucionária, não há arte revolucionária.) Sim, porque Leminski atira à Lua, sem mediações metafóricas, uma indagação sem nenhuma nuance eufemística: “lua à vista / brilhavas assim / sobre auschwitz?”.
Entendemos que, aqui, a Lua – além de sua literalidade fanopéica: satélite a brilhar – ocupa, metonimicamente, o próprio papel da poesia. (Por extensão, poder-se-ia dizer que, representando a poesia, a Lua representaria igualmente o poeta, cidadão que, como todos, envolve-se nos redemoinhos da vida.) Como se a questão posta fosse: poesia, não vais fazer nada diante do que testemunha? Vais posar de vestal, etérea e eterna, enquanto a peste se alastra? Vais continuar enfeitando o mundo, assim “assim”, musa longínqua, cúmplice de crimes? Desse impasse – a irredutibilidade de a poesia “acontecer” sem compromisso com mais nada a não ser consigo mesma vs a imperiosidade de exercer função social relevante no sentido de atuar em direção à justiça no mundo; em síntese, o caráter autotélico da poesia diante da urgência da ação ética –, desse impasse, dizíamos, deriva a célebre afirmação de Adorno: “Escrever um poema após Auschwitz é um ato de barbárie, e isso corrói até mesmo o conhecimento de por que hoje se tornou impossível escrever poemas”[6]. Para o que ora elaboramos, importa examinar de perto a lapidar sentença de Adorno. Encaminhemo-nos, pois, ao artigo “Após Auschwitz”, de Jeanne Marie Gagnebin[7], que se dedica a historiar e a interpretar o dito adorniano.
Inicia a autora indicando a lucidez do filósofo alemão, nos anos 1940, ao rever radicalmente as relações entre ética e estética. Desde a Dialética do Esclarecimento, em 1947, ele e o parceiro Horkheimer colocaram-se como pensadores críticos da tradição e da cultura ocidentais, em particular alemãs. Gagnebin vai buscar, no livro Le mithe nazi, de Jean-Luc Nancy e Philippe Lacoue-Labarthe, uma explicação precisa acerca das relações entre mito, mímesis e identidade: “O mito é uma ficção no sentido forte do termo, no sentido ativo de dar uma feição, ou, como o diz Platão, de ‘plástica’: ele é, então, um ficcionar, cujo papel consiste em propor, senão em impor modelos ou tipos [...], tipos que, ao imitá-los, um indivíduo – ou uma cidade, ou um povo inteiro – pode usar para se apreender e se identificar a si mesmo” (apud Gagnebin, p. 95).
Pode parecer estranho, à primeira vista, mas a Lua é, a seu modo, um mito. Por um processo algo esdrúxulo de personificação, a Lua atravessa séculos e séculos no nosso imaginário ocidental como um modelo bastante heroicizado: bela, misteriosa, inatingível, inspiradora, poderosa, em muito semelhante a um cavaleiro homérico ou bretão. A Lua cheia, em especial, suposto “personagem” do poema leminskiano, multiplica para si esses atributos mitificadores. Até, praticamente, o século XX, com a plena desromantização – no discurso poético[8] – de certos clichês, a Lua rivalizou com flores, mar, nuvens, pássaros, ondas, olhos, coração etc., entre os signos que mais encharcaram o estro dos poetas. Sem temor, pode-se mesmo afirmar que, ainda hoje, a Lua cheia paira, monstruosa, imperial, sobre a imaginação massiva do senso comum. É isso mesmo que lemos no Dicionário de símbolos: “Fonte de inumeráveis mitos, lendas e cultos que dão às deusas a sua imagem (Ísis, Istar, Artêmis ou Diana, Hécate...), a Lua é um símbolo cósmico de todas as épocas, desde os tempos imemoriais até nossos dias, generalizado em todos os horizontes”[9]. A este mito, então, cujos valores altissonantes os homens querem “imitar”, Leminski se dirige diretamente, cobrando-lhe que saia de seu absenteísmo. Se, recuperando o silogismo, à Lua podemos equiparar, sob metáfora, a própria poesia, o poema está cobrando que a história da poesia se faça também poesia da história, e que não fique, feito Lua, brilhando ao longe.
Continua Gagnebin dizendo que, a partir da Dialética, Adorno quer fazer da filosofia “uma força de resistência contra os empreendimentos totalitários, velados ou não, que também são partes integrantes do desenvolvimento da razão ocidental” (p. 100). Dessa postura crítica e nesse contexto desencantado de um cenário pós-guerra, surge a famosa frase, repetida à exaustão: “Escrever um poema após Auschwitz é um ato de barbárie, e isso corrói até mesmo o conhecimento de por que hoje se tornou impossível escrever poemas”. Gagnebin vai no cerne do sentido do axioma e, em vez de lê-lo ingenuamente – leitura que tanto se faz por aí afora – como condenação do exercício e do labor poético, diz que “essa sentença ressalta muito mais a urgência de um pensamento não harmonizante, mas impiedosamente crítico, isto é, a necessidade da cultura como instância negativa e utópica contra sua degradação a uma máquina de entretenimento e de esquecimento” (p. 101). Depois de 1949, quando escreveu a polêmica afirmação em “Crítica à cultura e à sociedade”, Adorno retorna a ela ainda duas vezes, em 1962, no ensaio “Engagement”, e em 1967, em Dialética negativa. O filósofo endurece e chama à responsabilidade a produção de qualquer gesto lírico e cultural – responsabilidade comprometida crítica e criativamente, que não ofenda os mortos: “Toda cultura após Auschwitz, inclusive a crítica urgente a ela, é lixo” (apud Gagnebin, p. 101). Tanto quanto na afirmativa primeira, também a reflexão teórica, histórica, filosófica se põe na berlinda: o pensamento moralmente responsável deve ter na sua formulação a dimensão mesma do envolvimento ético. Se não, é lixo, ou seja, “não é somente aquilo que fede e apodrece, mas antes de mais nada é aquilo que sobra, de que não se precisa, aquilo que pode ser jogado fora porque não possui existência independente plena”, dirá, agora,Gagnebin (p. 102).
É com essa indignação que, em forma comprimida, Leminski ecoa: “lua à vista / brilhavas assim / sobre auschwitz?”. Seguindo a difícil lição que Seligmann aponta – “A esta altura da história e da reflexão estética não podemos considerar uma aporia intransponível a relação estabelecida entre as artes, o prazer e a denúncia e memória da dor e do mal” (p. 97) –, tentemos detectar, com lente, ali na forma estética do poema o espírito ético que, possivelmente, fez com que ele se desse a ver exatamente desse jeito. Para tanto, não sendo muitas, comentemos brevemente cada uma das palavras e, em arremate, após, o conjunto do poema:
LUA: o abalo que Leminski realiza na imagem pura, mítica, quase unânime em torno do signo “lua”, ganha ressonância na fala de Italo Calvino que, partindo de poemas de Leopardi, diz que, “Desde que surgiu nos versos dos poetas, a Lua teve sempre o poder de comunicar uma sensação de leveza, de suspensão, de silencioso e calmo encantamento”[10]. Contra esse milenar encantamento que se encantoa bem longe dos problemas humanos, Leminski investe, diria até: triste, mas adornianamente sem amaciar[11]. A Lua, de eterna musa, vira ré, cúmplice, suspeita. E leva, junto, metonimicamente, a própria poesia. Aqui, Lua, “meu canto contigo não compactua”.
À VISTA: embora em qualquer fase – nova, crescente, cheia, minguante – a Lua esteja “à vista”, supomos que esta expressão reforce a idéia de “Lua cheia”, dada a maior luminosidade que tal estado proporciona. Estar “à vista” pressupõe algum grau de exposição para os olhos alheios; localizar-se alta, inalcançável, aumenta o desejo, estimula o fetiche da posse afetiva. Não espanta – pela alta beleza da Lua que se exibe, ancestral, “à vista” – a absurda quantidade de obras que viram no astro um mote inspirador.
BRILHAVAS: o uso da segunda pessoa, “tu”, confirma o tom sério e cerimonioso do poema, como se o verbo quisesse, pelo tratamento protocolar que incorpora, manter uma distância semelhante à que o satélite tem do nosso planeta. Esse tom – dado pelo “tu – traz, se não exageramos na nota, um certo apelo brechtiano, anti-romântico, ao eliminar do poema a primeira pessoa lírica, embora presuma-se que a pergunta seja feita por alguém, porta-voz de um grande grupo de pessoas inconformadas com a cumplicidade “sobre Auschwitz”. Os sentidos sabidos de “brilhar” não escondem segredos: fulgurar, luzir, sobressair, seduzir pertencem ao campo afim das possibilidades semânticas.
ASSIM: “assim é um advérbio díctico [dêitico], isto é, está intimamente ligado ao momento e ao contexto situacional da enunciação, sem os quais o sentido da frase freqüentemente fica incompleto”[12]. Associado aos elementos anteriores (“lua”, “à vista” e “brilhavas”), o “assim”, ou seja: “desse modo”, parece-nos intensificar a grandeza e a beleza da Lua e de seu brilho, como se supuséssemos algo do tipo “brilhavas [tão bela] assim”, ou “brilhavas [tão altaneira] assim”, ou “brilhavas [tão soberba] assim”? Pelo teor de contraste que o poema apresenta (a beleza mitopoética da Lua vs o massacre histórico de Auschwitz), parece-nos improvável que o “assim” remeta a algo do tipo “brilhavas [tão triste] assim”, ou “brilhavas [tão melancólica] assim”.
SOBRE: assevera-nos o Houaiss que “sobre”, de modo geral, “assinala situação de superioridade em relação a um limite concreto no espaço”, como, por exemplo, a Lua em relação a Auschwitz. Estar “sobre”, pois, ratifica literalmente o status do satélite e, de certo modo, embora incomparáveis, ratifica a hierarquia de um elemento (a Lua: universal, mítica, etérea e distante) sobre outro (Auschwitz: particular, histórico, concreto, entregue à própria sorte).
AUSCHWITZ: há, hoje, farto material sobre Auschwitz. Bastam-nos, por contundentes e complementares, duas breves análises: “do ponto de vista do historiador, o que está em questão com o Holocausto, com Auschwitz, não é a morte individual, que pode ser contada pela memória individual, mas o genocídio de um povo executado por um Estado moderno no coração da Europa em pleno século XX”[13]; ou: “Tanto a motivação decisiva do genocídio – a biologia racial – quanto suas formas de realização – as câmaras de gás – eram perfeitamente modernas. Se a racionalidade instrumental não basta para explicar Auschwitz, ela é sua condição necessária e indispensável. Encontra-se nos meios de exterminação nazistas uma combinação de diferentes instituições típicas da modernidade: ao mesmo tempo, a prisão descrita por Foucault, a fábrica capitalista da qual falava Marx, ‘a organização científica do trabalho’ de Taylor, a administração racional/burocrática segundo Max Weber”[14]. As motivações pessoais que levaram Leminski (a) a inquirir a Lua, fazendo oscilar seu embolorado lugar de modelo poético, e (b) a selecionar o topos “Auschwitz”, como exemplo de injustiça e desumanidade – isso não sabemos, mas especulamos. Na obra do curitibano, ocorrem várias aparições de “lua”, em que ela exerce tranqüilamente, sem pudores, o papel que vem da tradição e se perpetua tempos afora[15]. Já quanto ao signo “Auschwitz” (grafado no poema com letra minúscula, procedimento comum que não carece de explicação), é evidente que a grandeza da atrocidade ali ocorrida justifica por si só a escolha do poeta. Mas, entrando num terreno que a interpretação poética não permite em hipótese alguma, que é o terreno da possibilidade do “se”, perguntamo-nos assim mesmo: e “se” em vez de “auschwitz” tivéssemos, por exemplo, “lua à vista / brilhavas assim / sobre hiroshima?” – ou, ainda, “lua à vista / brilhavas assim / sobre os incas?” –, isso mudaria alguma coisa? Sim, mudaria, mas não paremos para analisar um poema inexistente. De imediato, acrescente-se apenas o óbvio, se em vez de “Auschwitz” tivéssemos “Hiroshima” ou “Incas” a especificidade histórica da denúncia ganharia novo foco: a bomba com que os americanos mataram milhares de japoneses instantaneamente e ainda anos e décadas depois, ou a carnificina que, há séculos, os espanhóis impuseram, sem piedade, à civilização inca, matando milhões (!) de índios. Para uma versão que se voltasse para a colonização portuguesa, teríamos: “lua à vista / brilhavas assim / sobre os tupis?” (e, rimas à parte, sobre tupinambás, aimorés, goitacazes, tabajaras...).
Provavelmente, o insight do poeta para escolher “auschwitz”, e não outro símbolo da ação do mal, deve ter aliado a solidariedade mundial em relação à memória dos mortos e à dor dos sobreviventes dos campos de concentração mais o fato de o poeta reconhecer-se como tendo um “coração de polaco”, lembrando que Auschwitz se localiza em território polonês: “meu coração de polaco voltou / coração que meu avô / trouxe de longe pra mim / um coração esmagado / um coração pisoteado / um coração de poeta”[16]. Em suma: a escolha de “auschwitz” atende, para este intérprete, a pelo menos três demandas distintas: a) ética, porque evoca – para que não se esqueça – a sombria lembrança do genocídio, do Holocausto, da Shoah; b) autobiográfica, porque evoca um lugar próximo a Narájow, na Polônia, supostamente onde nasceu o avô paterno do poeta; c) estética, porque, como veremos a seguir, é palavra que se encaixa, clara e enigmática, no corpo do poema: exatamente porque estranha e estrangeira, de imediato dificulta, para um leitor que não domine o alemão, saber a pronúncia “correta” – será “Áux/vitz”?, “Áux/uitz”?, será “aux/Vitz”?, “aux/Uitz”? O impacto desse estranhamento se revigora com a interrogação final, obrigando o leitor a uma entonação diferenciada de uma palavra de cuja pronúncia duvida[17].
Um rápido exame dos jogos sonoros no poema nos fornece um quadro bem interessante e que indica a “estranha precisão” do termo em pauta – “auschwitz”: em “lua à vista / brilhavas assim / sobre auschwitz?”, temos três versos, à maneira de um haicai. Considerando “Áux/vitz” como a pronúncia correta no padrão formal alemão, sendo portanto uma paroxítona dissílaba, teríamos o esquema rítmico 3/5/3 (“lu / à a / vis”, “bri / lha / vas / as / sim”, “so / bre / ausch”), uma espécie de mini-haicai, cujo formato tradicional, em português, pede um esquema 5/7/5. Mesmo tendo a tônica em /a/ (Ausch), podemos “ouvir” uma subtônica na sílaba seguinte, em /i/ (witz), o que se harmoniza com as rimas anteriores, ambas em /i/ – “vista” e “assim”. No vocábulo “vista”, vemos, de lupa, um anagrama sutil e sagaz de “witz”. Aliterações e assonâncias percorrem o poema: em “vista”, “brilhavas” e “auschwitz”, o /v/ prevalece; o /a/ acontece desde a elisão em “lua à”, forte em “brilhavas” e em “auschwitz”; também o /s/ se insinua decisivo em “vista”, “brilhavas”, “assim”, “sobre” e “auschwitz”; até a repetição do mesmo encontro consonantal – “brilhavas” e “sobre” – contribui para a reverberação sincronizada do poema. Essa harmonia sonora dá um tom sereno ao haicai, que, no entanto, está tratando de modo severo, como dissemos, um símbolo poético, com status de mito: a “lua”, palavra primeira do poema. Na outra ponta, a última palavra, “auschwitz”, tensiona a harmonia formal, com todo o sentido histórico – catastrófico – que carrega e deflagra no leitor. É sobre este movimento de “fratura”, de quebrar a expectativa do que as pessoas esperam, mas quebrar ali na forma mesma do poema, que Adorno discorre no clássico “Palestra sobre lírica e sociedade”: “As mais altas composições líricas são, por isso, aquelas nas quais o sujeito, sem qualquer resíduo da mera matéria, soa na linguagem, até que a própria linguagem ganha voz. O auto-esquecimento do sujeito, que se entrega à linguagem como a algo objetivo, é o mesmo que o caráter imediato e involuntário de sua expressão: assim a linguagem estabelece a mediação entre lírica e sociedade no que há de mais intrínseco”[18].
Não encontramos nas cartas e nos ensaios de Leminski, nem tampouco na biografia feita por Toninho Vaz[19], referência que nos certificasse ter o poeta ciência da frase de Adorno. No entanto, antenado que só, além de “monge e bandido, pé-de-cana e judoca, vanguardista e marqueteiro, curitibano e universal”[20], foi também professor de História – a teia de Catatau, sua leminskíada barrocodélica (como escreveu Haroldo), traz estreita ligação entre literatura e história. Seu interesse pela História é inconteste, basta lembrarmos a biografia que ele, Leminski, escreveu sobre Trotski[21]. Ou uma carta enviada a Bonvicino:
o que interessa, o que a gente quer, no fundo, é MUDAR A VIDA / alterar as relações de propriedade a distribuição das riquezas / os equilíbrios de poder entre classe e classe nação e nação / este é o grande Poema: nossos poemas são índices dele / meramente
nossa poesia tem que estar a serviço de uma Utopia / ou como v. disse de uma ESPERANÇA / é isso que quero dizer quando falo / que um poeta para ser poeta tem que ser mais que poeta / é preciso deixar que a História chegue em você / dê choque em você / te chame te eleja te corteje / te envolva e te engaje [Carta 9, de “28/leão/77”][22]
Há tantas e tamanhas correspondências entre a postura do poeta e do filósofo que não custa imaginar que, além das apontadas motivações éticas, autobiográficas e estéticas, para a feitura do poema tenha existido também uma motivação intertextual, no sentido de dialogar diretamente com a frase de Adorno, respondendo-a, na veia, em nome dos poetas, décadas após Auschwitz, o horror irrepresentável, vir a público. Se Leminski inventou um mapa-múndi, fazendo o avô nascer em Narajów, damo-nos a razoável licença de imaginar que a idéia de Adorno estava em sua mira ao colocar, contra a luminosidade da poética lua, as trevas fúnebres de Auschwitz. Que Leminski conhecia Adorno não se duvida: no final de seu artigo “Arte in-útil, arte livre”, em Anseios crípticos, o poeta reconhece a envergadura do pensamento do filósofo: “Para Adorno, a grandeza da arte está em sua capacidade de resistir ao estatuto de mercadoria, em situar-se no mundo como um ‘objeto não identificado’. Em sua recusa de assumir a forma universal da mercadoria, a arte, a obra de arte é a manifestação, em seus momentos mais puros e radicais, de uma ‘negatividade’. Ela é a ‘antítese da sociedade’. A antítese social da sociedade”[23]. Antítese que vai constituir a “fratura” de que falávamos há pouco.
De todo modo, creio que ambos, Leminski e Adorno, concordariam com o agudo raciocínio de Gagnebin, que vai encerrando esse ensaio: “Criar em arte – como também em pensamento – ‘após Auschwitz’ significa não só rememorar os mortos e lutar contra o esquecimento, uma tarefa por certo imprescindível, mas comum à toda tradição desde a poesia épica, mas também acolher, no próprio movimento da rememoração, essa presença do sofrimento sem palavras, nem conceitos, que desarticula a vontade de coerência e de sentido de nossos empreendimentos artísticos e reflexivos” (Gagnebin, p. 106). Se entendermos, porém, que “sem palavras, nem conceitos” significa o silêncio – feito o da lua –, então não teríamos, literalmente, nem poemas nem ensaios. Só um eterno, e mudo, luto.
Referências:
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[1] LEMINSKI, Paulo. Distraídos venceremos. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 129.
[2] Cf. SELIGMANN-SILVA, Márcio. “Literatura, testemunho e tragédia: pensando algumas diferenças”. O local da diferença: ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução. São Paulo: Ed. 34, 2005, p. 81-104.
[3] Cf. SOUZA, Marcelo Paiva de. “História, memória, invenção: a Polônia de Paulo Leminski”. In: Revista Contexto nº 13. Vitória: PPGL, 2006, p. 37-56. Devo a este engenhoso e indispensável artigo as lembranças referentes às ligações familiares, filosóficas, poéticas, culturais – reais e inventadas – de Leminski com a Polônia. Paiva explica e explora muito bem – com auxílio da biografia de Toninho Vaz – poema em que Leminski lança mão do acaso para criar um lugar para “Narájow”: Uma mosca pouse no mapa / e me pouse em Narájow, / a aldeia donde veio / o pai do meu pai, / o que veio fazer a América, / o que vai fazer o contrário, / a Polônia na memória, / o Atlântico na frente, / o Vístula na veia. /// Que sabe a mosca da ferida / que a distância faz na carne viva, / quando um navio sai do porto / jogando a última partida? /// Onde andou esse mapa / que só agora estende a palma / para receber essa mosca, / que nele cai, matemática?” (LEMINSKI, Paulo. Distraídos venceremos. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 84).
[4] Refiro-me a poema de Leminski com este título, “Profissão de febre”: “quando chove, / eu chovo, / faz sol, / eu faço, / de noite, / anoiteço, / tem deus, / eu rezo, / não tem, / esqueço, / chove de novo, / de novo, chovo, / assobio no vento, / daqui me vejo, / lá vou eu, / gesto no movimento” (LEMINSKI, Paulo. La vie en close. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 67.)
[5] LEMINSKI, Paulo. Caprichos & relaxos. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 76.
[6] ADORNO, Theodor. “Crítica cultural e sociedade”. Prismas. Tradução: Augustin Wernet e Jorge Mattos Brito de Almeida. São Paulo: Ática, 1998, p. 26 [7-26].
[7] GAGNEBIN, Jeanne Marie. “Após Auschwitz”. In: História, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes. Organização: Márcio Seligmann-Silva. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003, p. 91-112.
[8] Cf. FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. Tradução: Marise M. Curione. São Paulo: Duas Cidades, 1978.
[9] CHEVALIER, Jean, GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Coordenação: Carlos Süssekind. Tradução: Vera da Costa e Silva et alii. 20. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006, p. 564.
[10] CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. Tradução: Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 37.
[11] Sabe-se que o humor é uma das marcas da poética leminskiana. Aqui, nesse poema, no entanto, o gesto chistoso ou trocadilhesco fica em suspenso.
[12] HOUAISS, Antônio. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2002.
[13] CYTRYNOWICZ, Roney. “O silêncio do sobrevivente: diálogo e rupturas entre memória e história do Holocausto”. In: História, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes. Organização: Márcio Seligmann-Silva. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003, p. 133 [125-140].
[14] LÖWY, Michael. “Barbárie e modernidade no século 20”. Disponível em http://www.sociologos.org.br/textos/forumsocial/Artigo%20de%20Michel%20Lowy%20sobre%20Modernidade.htm. Acesso em: 21/06/2007.
[15] Veja-se, por exemplo, “A Lua no cinema”: “A lua foi ao cinema, / passava um filme engraçado, / a história de uma estrela / que não tinha namorado. /// Não tinha porque era apenas / uma estrela bem pequena, / dessas que, quando apagam, / ninguém vai dizer, que pena! /// Era uma estrela sozinha, / ninguém olhava pra ela, / e toda a luz que ela tinha / cabia numa janela. /// A lua ficou tão triste / com aquela história de amor / que até hoje a lua insiste: / — Amanheça, por favor!” (LEMINSKI, Paulo. Distraídos venceremos. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 49.)
[16] LEMINSKI, Paulo. Caprichos & relaxos. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 55.
[17] No ensaio “Quando cantam os pensamentos (a pergunta como canto)”, Leminski dá valor filosófico à pergunta: “É essa capacidade das línguas de formular perguntas que funda um mundo humano. (...) A interrogação é o próprio fundamento do diálogo, o reconhecimento da diferença entre o eu, que eu sou, e o eu que o outro é, separados e próximos pela prática da linguagem, hiato e ponte. (...) É a pergunta, o perguntar, que socializa, isto é, humaniza o homem” (LEMINSKI, Paulo. “Quando cantam os pensamentos (a pergunta como canto)”. Anseios crípticos: peripécias de um investigador do sentido no torvelinho das formas e das idéias. Curitiba: Edições Criar, 1986, p. 55-57).
[18] ADORNO, Theodor. “Palestra sobre lírica e sociedade”. Notas de literatura I. Tradução e apresentação de Jorge M. B. de Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003, p. 74 [65-89].
[19] Cf. VAZ, Toninho. Paulo Leminski: o bandido que sabia latim. Rio de Janeiro: Record, 2001.
[20] SOUZA, Marcelo Paiva de. “História, memória, invenção: a Polônia de Paulo Leminski”. In: Revista Contexto nº 13. Vitória: PPGL, 2006, p. 37.
[21] Cf. LEMINSKI, Paulo. Vida. Porto Alegre: Editora Sulina, 1990.
[22] LEMINSKI, Paulo. Envie meu dicionário: cartas e alguma crítica – Paulo Leminski e Régis Bonvicino. Organização: Régis Bonvicino. São Paulo: Ed. 34, 1999, p. 46.
[23] LEMINSKI, Paulo. “Arte in-útil, arte livre”. Anseios crípticos: peripécias de um investigador do sentido no torvelinho das formas e das idéias. Curitiba: Edições Criar, 1986, p. 34.
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